Seleção: Professora Ana Paula Lino
STJ afasta violência presumida em crimes sexuais
HABEAS CORPUS Nº 88.664 - GO (2007/0187687-4)
RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES
R.P/ACÓRDÃO : MINISTRO CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/SP)
IMPETRANTE : GENTIL MEIRELES NETO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
PACIENTE : SALES DELFINO LEITE
EMENTA
ESTUPRO MEDIANTE VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VÍTIMA COM 13 ANOS E 11 MESES DE IDADE. INTERPRETAÇÃO ABRANGENTE DE TODO O ARCABOUÇO JURÍDICO, INCLUINDO O ECA. MENOR A PARTIR DOS 12 ANOS PODE SOFRER MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS. HABEAS CORPUS
COMO INSTRUMENTO IDÔNEO PARA DESCONSTITUIR SENTENÇA CONDENATÓRIA. DESCARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E, POIS, DO ESTUPRO. ORDEM CONCEDIDA.
1. Se o ECA aplica medidas socioeducativas a menores a partir dos 12 anos, não se concebe que menor com 13 anos seja protegida com a presunção de violência.
2. Habeas corpus em que os fatos imputados sejam incontroversos é remédio hábil a desconstituir sentença condenatória.
3. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Celso Limongi concedendo a ordem em menor extensão, seguido pelos Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, conceder a ordem de habeas corpus , nos termos do voto do Sr. Ministro Celso Limongi, que lavrará o acórdão.
Vencido em parte o Sr. Ministro Relator.
Votaram com o Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP) os Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.
Brasília, 23 de junho de 2009(Data do Julgamento)
MINISTRO CELSO LIMONGI
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP)
Relator
RELATÓRIO
O SR. MINISTRO OG FERNANDES: Em benefício de Sales Delfino Leite impetrou-se este habeas corpus, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, que deu parcial provimento ao apelo defensivo, nos termos desta ementa (fls. 34):
APELAÇÃO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PROVA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. PENA. REGIME PRISIONAL.
1 - Contando a vítima à época do fato com apenas 13 anos de idade, presume-se a violência para efeito de caracterização do estupro (CP, art. 224, a).
2 - À luz das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, analisadas, lícita é a redução da pena-base para quantum pouco acima do mínimo legal.
3 - O estupro, mesmo em sua forma básica, em que não há lesão corporal de natureza grave ou morte, constitui crime hediondo, devendo sua pena ser cumprida em regime integralmente fechado (Lei 8.072, arts. 1º, V, e 2º, § 1º).
Apelação parcialmente provida.
Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de estupro, mediante violência presumida (vítima menor de 14 anos). Após regular instrução, sobreveio sentença condenando-o à pena de 8 (oito) anos e 7 (sete) meses de reclusão, a ser cumprida integralmente no regime fechado.
Contra essa decisão, a defesa interpôs apelação que, como visto, foi parcialmente provida, com a consequente redução da pena a 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de reclusão, mantida, no mais, a sentença.
Foram opostos - e rejeitados - embargos de declaração. Interposto recurso especial, inadmitido na origem. Sobreveio, então, agravo de instrumento, ao qual se negou provimento (Ag-722.269/GO).
Neste habeas corpus, alega o impetrante não haver provas suficientes para a condenação, razão por que se pede a absolvição do paciente.
Sustenta-se, subsidiariamente, falta de fundamentação à exasperação da pena acima do patamar mínimo.
Informações prestadas pela autoridade apontada como coatora às fls. 54 e seguintes.
Em manifestação subscrita pela Procuradora Regional Eliana Péres Torelly de Carvalho, no exercício das atribuições de Subprocurador-Geral, o Ministério Público Federal opinou pela concessão parcial da ordem. Eis a ementa do parecer (fls. 71/72):
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. ALEGAÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DO MATERIAL PROBATÓRIO EM QUE SE FUNDOU A CONDENAÇÃO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. NECESSIDADE DE AMPLO REVOLVIMENTO DA MATÉRIA FÁTICA EM SEDE DE HABEAS CORPUS .
DOSIMETRIA DA PENA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS PARCIALMENTE FAVORÁVEIS. FIXAÇÃO POUCO ALÉM DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE.
AGRAVANTE GENÉRICA. REINCIDÊNCIA. AGRAVAMENTO DA PENA SEM QUALQUER COMPROVAÇÃO DA REITERAÇÃO DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. ILEGALIDADE CONFIGURADA.
CRIME HEDIONDO. REGIME INTEGRALMENTE FECHADO.
INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. LEI Nº 11.464/07, QUE ESTABELECEU O REGIME INICIALMENTE FECHADO. LEI PENAL BENÉFICA AO RÉU. APLICAÇÃO RETROATIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, XL, DA CF, E DO AT. 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CP. CONCESSÃO EX OFFICIO DO WRIT.
PARECER PELO CONHECIMENTO PARCIAL DO WRIT, E, NA PARTE CONHECIDA, PELA CONCESSÃO PARCIAL, APENAS PARA RETIRAR A EXASPERAÇÃO RELATIVA À AGRAVANTE DE REINCIDÊNCIA, FIXANDO A PENA EM SEIS ANOS E SEIS MESES DE RECLUSÃO. MANIFESTAÇÃO PELA CONCESSÃO DE OFÍCIO DE HABEAS CORPUS PARA AFASTAR A PROIBIÇÃO DA PROGRESSÃO DE REGIME.
É o relatório.
VOTO
O SR. MINISTRO OG FERNANDES (Relator): Como visto, são dois os pedidos formulados. Assim, melhor sejam eles examinados em separado.
(I) pedido de absolvição, calcado na insuficiência de provas:
A pretensão trazida pelo impetrante, sem dúvida, esbarra na necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório, providência essa vedada na via eleita dada sua estreiteza.
Nesse sentido:
CRIMINAL. HC. ABSOLVIÇÃO. ANÁLISE INVIÁVEL NA VIA ELEITA. REVOLVIMENTO DOS FATOS E PROVAS. IMPROPRIEDADE DO WRIT. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONTINUIDADE DELITIVA. INSTITUTO JÁ APLICADO PELO MAGISTRADO SINGULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA. 1 - O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise do pleito de absolvição do réu, em virtude da necessidade de análise aprofundada das circunstâncias de fato e das provas dos autos, inviável na via eleita. (HC-76.231/DF, Relatora Desembargadora convocada Jane Silva, DJ de 24.9.07)
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA (VÍTIMA COM 13 ANOS DE IDADE). PENA CONCRETIZADA: 6 ANOS DE RECLUSÃO. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO. REVISÃO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA.
IMPROPRIEDADE NA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA MISERABILIDADE DA VÍTIMA. INEXIGÊNCIA DE FORMALIDADES. ORDEM DENEGADA. 1. É inviável, na via estreita do Habeas Corpus , revisar matéria fático-probatória com a finalidade de obter pronunciamento judicial que implique absolvição do crime pelo qual o paciente foi condenado, sobretudo se as instâncias ordinárias, soberanas na análise fática dos autos, frisaram que a autoria restou evidenciada, bem como a materialidade do crime de estupro . (HC-85.660/PB, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ e de 4.8.08)
HABEAS CORPUS . DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITO PENAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ABSOLVIÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. INCABIMENTO. PENA-BASE NO MÍNIMO. CÚMULO MATERIAL DAS PENAS. CONSTRANGIMENTO. INOCORRÊNCIA. ÓBICE À PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL. INCABIMENTO. 1. O reexame de provas, à moda de segunda apelação em que se pretende discutir a justiça da condenação, não se ajusta ao âmbito angusto do habeas corpus,
mormente em casos tais em que a sentença e o acórdão impugnado estão lastreados nos elementos de prova colhidos no decorrer do processo. (HC-62.273/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJ e de 22.4.08)
Há de ser ressaltado que a prova dos autos indica que, à época dos fatos, a menor não havia completado 14 (quatorze) anos. Daí o reconhecimento da violência presumida, presunção essa tida por absoluta, na linha da jurisprudência dominante desta Corte.
A propósito, confira-se este julgado da Terceira Seção:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA LIBERDADE SEXUAL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PRESUNÇÃO DE CARÁTER ABSOLUTA. EMBARGOS PROVIDOS.
1. O art. 224 do CPB prevê algumas circunstâncias, dentre as quais está inserida a menor de 14 anos, em que ainda não haja efetiva violência física ou real, esta será presumida, diante de uma certa restrição na capacidade da vítima de se posicionar em relação aos fatos de natureza sexual.
2. Estando tal proteção apoiada na innocentia consilii da vítima, que não pode ser entendida como mera ausência de conhecimento do ato sexual em si, mas sim como falta de maturidade psico-ética de lidar com a vida sexual e suas conseqüências, eventual consentimento, ainda que existente, é desprovido de qualquer valor, possuindo a referida presunção caráter absoluto . Precedentes do STJ e STF.
3. O MPF manifesta-se pelo provimento dos embargos.
4. Embargos de Divergência providos. (EREsp-666.474/MG, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ e de 3.4.09)
De mais a mais, as instâncias ordinárias concluíram pela condenação com lastro na prova testemunhal colhida no transcurso da instrução. Assim, inexiste o apontado constrangimento ilegal.
(II) pedido de redução da pena imposta:
Para melhor elucidar a questão, indispensável a prévia leitura da sentença e do acórdão de apelação, na parte em que interessa:
Ex positis e com base nas provas dos autos, conheço da denúncia e julgo procedente para condenar Sales Delfino Leite, nas penas do art. 213 c/c art. 224, a, e art. 225, § 1º, I, todos dispositivos do CP, passando com espeque no art. 68, e 59, ambos do Código Repressivo a dosar-lhe a pena:
Destarte, tenho que o réu é imputável, tinha consciência da ilicitude e lhe era exigível conduta diversa; é reincidente; sua conduta social é irregular; há indicativos de personalidade voltada para a criminalidade; as consequências do crime foram enormes, cuja repercussão se dará por toda vida da vítima e seus familiares; a motivação para o crime seu deu pela ausência de controle da libido, da sexualidade, dos ímpetos da carne; as circunstâncias lhe são desfavoráveis, isto é, mesmo depois da infração criminal, continuou por longo tempo a molestar a vítima e seus familiares, tanto que lhe foi decretada a prisão processual; quanto ao comportamento da vítima, em nada contribuiu para a ação do denunciado;
Nestes termos, fixo como pena base 08 anos e 04 meses de reclusão, acrescida em três meses em razão da circunstância agravante indicada no art. 61, I, do CP, pena que torno definitiva em 08 anos e 07 meses de reclusão, por ausência de circunstâncias atenuantes ou agravantes, minorantes ou majorantes, a favor ou contra o Denunciado. (fls. 18/19) A pena aplicada, porém, mostra-se exacerbada, motivo pelo qual deve ser reduzida.
Levando-se em conta as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP, suficientemente analisadas, e à pena fixada para o crime em questão, que é de 06 (seis) anos, reduzo a estabelecida pena-base de 08 (oito) anos e 4 (quatro) meses para 06 (seis) anos e 06 (seis) meses, quantum esse que aumento em razão da agravante da reincidência dos 03 (três) meses fixados, resultando em 06 (seis) anos e 09 (nove) meses de reclusão a pena definitiva do apelante. (fls. 32)
Como visto, o Tribunal de origem reformou parcialmente a pena-base, mantendo-a, contudo, em 6 (seis) meses acima do patamar mínimo. Daí a irresignação defensiva.
Ao que quero crer, também sem razão o impetrante. Isso porque a majoração se justifica principalmente pelas circunstâncias do crime, tidas por desfavoráveis, pelo fato de que o paciente "mesmo depois da infração criminal,
continuou por longo tempo a molestar a vítima e seus familiares, tanto que lhe foi decretada a prisão processual". Assim, irrepreensível a exasperação operada.
Quanto à agravante da reincidência, reconhecida por ambas as instâncias ordinárias e até então não contestada pela defesa, vejo, a partir da leitura dos autos, que o impetrante não cuidou de comprovar a alegada primariedade do paciente. Não se juntou folha de antecedentes criminais ou qualquer documento similar.
Tal encargo, por certo, cabia à defesa, que dele não se desvencilhou. Desse modo, mostra-se inviável, aqui e agora, o afastamento do acréscimo à pena.
Calha ressaltar que nada obsta a impetração de novo habeas corpus, melhor instruído, agitando uma vez mais a questão.
Por fim, deve ser afastada a vedação à progressão de regime, uma vez que a jurisprudência hoje pacífica desta Corte e do Supremo Tribunal Federal entendem ser inconstitucional o dispositivo que proibia o deferimento do benefício.
Tendo em vista que o crime atribuído ao paciente foi cometido antes da Lei nº 11.464/07, ela não se lhe pode aplicar, em obediência ao princípio da irretroatividade da lei mais gravosa. A progressão de regime há de obedecer aos requisitos presentes no art. 112 da Lei de Execução Penal.
À vista do exposto, concedo parcialmente a ordem, tão somente a fim de permitir a progressão de regime, que poderá ser deferida, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 112 da Lei nº 7.210/84.
É como voto. |